30 maio 2010

MUTAÇÕES DO TRABALHO E EXPERIÊNCIAS URBANAS

TRABALHO VISTO DE DENTRO : DA RECUSA AO TRABALHO “ESCRAVO” AO ÓCIO CRIATIVO SEM CULPA"
"MUTAÇÕES DO TRABALHO: do trabalho limitante ao ócio criativo sem culpa (Não trabalho)"
"O MODELO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E AS NOVAS FORMAS DE RELAÇÃO"
“ENTRE O TRABALHO LIMITANTE (CONDICIONANTE, ESCRAVO) E LIBERDADE DE EXPRESSÃO (VIVER DE BICO) SEM CULPA E SEM MEDO”
"CONTINUIDADE OU MUDANÇA: O MODELO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO"
"RELAÇÕES DE TRABALHO: ENTRE UMA CARREIRA ( UMA DIREÇÃO) E MULTI EXPRESSÕES (VIVER DE BICO)"
"Uma sociologia do trabalho contrastada"

MUTAÇÕES DO TRABALHO E EXPERIÊNCIAS URBANAS . vera telles .
Neste artigo, pergunta-se sobre as dimensões societárias das atuais mutações do trabalho, em particular sua desconexão dos dispositivos do emprego sob as formas variadas de trabalho precário e de subcontratação, ou seja: de que modo as novas realidades do trabalho (e do não-trabalho) redesenham o mundo social, as relações de força e os campos de práticas que fazem a tessitura da cidade e seus espaços. As circunstâncias do trabalho precário e intermitente alteram tempos e espaços da experiência social, bem como a própria experiência urbana nos circuitos descentrados dos "territórios da precariedade". Este artigo propõe prospectar essas novas realidades seguindo os percursos e as trajetórias urbanas das novas gerações. Acredita-se que essa pode ser uma via de entrada profícua para a descrição desse mundo social redefinido: a diferença entre as gerações tem hoje a peculiaridade histórica de coincidir com mudanças de fundo no mundo do trabalho e nas dinâmicas urbanas. Por outro lado, essa é também uma maneira de relançar a pergunta sobre os sentidos do trabalho e seus efeitos estruturantes na vida social. Resumo

TELLES, Vera da Silva. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo soc., jun. 2006, vol.18, no.1, p.173-195. ISSN 0103-2070.

Já não é de hoje que se discutem os efeitos excludentes das atuais mutações do trabalho, sob o impacto da reestruturação produtiva em tempos de revolução tecnológica e globalização da economia. No entanto, ainda pouco se sabe sobre as configurações societárias que vêm sendo urdidas nas dobras dessas transformações. Entre, de um lado, os artefatos da "cidade global" sob o foco dos debates entre urbanistas e pesquisadores da economia urbana e, de outro, os "pobres" e "excluídos" tipificados como público-alvo das políticas ditas de inserção social, há todo um entramado social que resta conhecer. E é isso justamente que situa o terreno em que ganha pertinência relançar a discussão sobre os sentidos e os lugares do trabalho na tessitura do mundo social. Se o trabalho não mais estrutura as promessas de progresso social, se os coletivos "de classe" foram desfeitos sob as injunções do trabalho precário, se direitos e sindicatos não mais operam como referências para as maiorias, se tudo isso mostra que os "tempos fordistas" já se foram, o trabalho não deixa de ser uma dimensão estruturante da vida social.

Mas é isso também que abre a interrogação sobre as novas configurações sociais nas quais essa experiência se processa. Não se trata tão-somente da ampliação do mercado informal e do aumento das hostes dos excluídos do mercado de trabalho. Como mostra Francisco de Oliveira (2003), a chamada flexibilização do contrato de trabalho significa que o trabalho "sem forma" se expande no núcleo do que antes era chamado de "mercado organizado". Na base desse processo, diz o autor, está o salto nas alturas da produtividade do trabalho em época de revolução tecnológica e financeirização da economia, de tal modo que o processo de valorização se descola dos dispositivos do trabalho concreto e termina por implodir as distinções entre tempo do trabalho e tempo do não-trabalho, entre emprego e desemprego. É o trabalho abstrato levado a extremos, que captura, mobiliza e transforma processos sociais e atividades as mais disparatadas em sobrevalor. Quebra-se o vínculo entre trabalho, empresa e produção da riqueza, e são outros os agenciamentos e diagramas de relações que se constituem. Zarifian (2003) fala de uma "economia de serviços", que não diz respeito às divisões conhecidas de setores de produção e que, a rigor, as torna irrelevantes, pois tem a ver com a trama de relações materiais e imateriais entre produção e consumo – publicidade, efeitos de marca, ações de marketing, cartões de fidelidade, e tudo o mais que acompanha o produto ou o serviço vendido/consumido, de tal forma que os consumidores terminam por participar da formação do valor apesar de não serem contabilizados como tal. Outros vão lançar mão da noção de "trabalho imaterial" para discutir atividades que não são codificadas como trabalho, que tentam fixar normas culturais, modas, gostos e padrões de consumo (cf. Lazzarato, 2002) ou que capturam e organizam os "tempos da vida" e não apenas os "tempos do trabalho" (cf. Aspe et al., 1996), tornando cada vez mais difícil diferenciar tempo do trabalho e tempo da reprodução.

São mutações de fundo. Mas então é preciso reconhecer que isso altera as relações entre trabalho e sociedade, seja no registro do trabalho que se descola dos dispositivos do emprego para se desdobrar nas formas variadas de trabalho precário, intermitente, descontínuo, e que tornam inoperantes as diferenças entre o formal e o informal; seja no registro das miríades de expedientes de sobrevivência que mobilizam os "sobrantes" do mercado de trabalho, mas que também operam como outros tantos circuitos por onde a riqueza social globalizada circula e produz valor, tornando igualmente indiscerníveis as diferenças entre emprego e desemprego, entre trabalho e não-trabalho. É uma situação que está a exigir um giro em nossas categorias, de modo a construir um plano de referência que permita colocar em perspectiva e figurar esses processos, ressituar os problemas, levantar outros tantos e perceber nas dobras das redefinições e desagregações do "mundo fordista" outros diagramas de relações, campos de força que também circunscrevem os pontos de tensão, resistências ou linhas de fuga pelas quais perceber a pulsação do mundo social.

Por outro lado, esse constante entra-e-sai do mercado em meio aos diversos expedientes de trabalho precário termina por alterar as referências que pautavam e ritmavam a vida social. Se é verdade que a desconexão entre trabalho e empresa já faz parte da paisagem social, isso também significa que os tempos da vida e os tempos do trabalho tendem a se articular sob novas formas não mais contidas nas relações que antes articulavam emprego e moradia, trabalho e família, trabalho e não-trabalho (cf. Bessin, 1999). Eram binaridades que pautavam os ritmos da vida social, tendo por referência as regularidades e os disciplinamentos impostos pelas formas de emprego (cf. Supiot, 1994; 1999). Mas será necessário então se desvencilhar dessas binaridades clássicas, assim como a de formal-informal, para apreender a nervura própria do campo social, que não se deixaria ver se nos mantivéssemos presos a elas na análise do trabalho e do urbano.

Essas questões exigiriam uma discussão mais acurada, impossível de desenvolver nos limites deste artigo. Porém, servem como indicação de que talvez tenhamos que mudar o foco das atenções. Talvez seja preciso um deslocamento do jogo de referências para ressituar o trabalho no mundo social. Não tanto as verticalidades que construíram o trabalho nas formas conhecidas (e suas regulações centralizadas), mas os vetores horizontalizados de relações que articulam trabalho, a cidade e seus espaços, outros agenciamentos sociais e também outros eixos em torno dos quais desigualdades, controles e dominação se processam, afetam formas de vida e os sentidos da vida (cf. Zarifian, 2000).

Também é o caso de se perguntar de que modo as novas realidades do trabalho (e do não-trabalho) redesenham mundos sociais, as relações de força e campos de práticas que fazem a tessitura da cidade e seus espaços. Ainda: de que modo são redefinidas práticas sociais e as mediações que conformam uma experiência social sob outro diagrama de relações e outro jogo de referências. As circunstâncias variadas do trabalho precário e intermitente redefinem tempos e espaços da experiência social (cf. Sennet, 2000). Alteram, poderíamos dizer, a própria experiência urbana, seguindo os circuitos descentrados dos "territórios da precariedade" (cf. Le Marchand, 2004).

Talvez seja então o caso de prospectar os pontos de clivagem dessas novas realidades seguindo as práticas (e suas mediações) nesses circuitos redefinidos do mundo social. Pontos de clivagem que podem ser apreendidos justamente nos deslocamentos da experiência social e que cavam fundo a diferença entre as gerações. E essa pode ser uma via de entrada para a descrição desse mundo social redefinido. Afinal, a diferença entre as gerações tem atualmente a peculiaridade histórica de coincidir com mudanças de fundo no mundo do trabalho e nas dinâmicas urbanas.

Trabalho e cidade: relações redefinidas

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702006000100010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Vera da Silva Telles é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, Cenedic (USP).



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