20 junho 2007

Paul Virilio
Paul Virilio nasceu em Paris em 1932. Arquiteto, urbanista, filósofo, ex-diretor da Escola de Arquitetura de Paris, especialista em questões estratégicas, tem se destacado como um dos principais ensaístas sobre os meios de comunicação, a "guerra da informação" e o mundo cibernético. Nos últimos anos, Paul Virilio vem se notabilizando como uma voz cética, quase uma nova dissidência, frente a uma sociedade desenfreadamente informatizada e onde o cidadão é vítima de um constante bombardeio (des)informacional.

O futuro do acidente

"O mundo do futuro será uma luta cada vez mais árdua contra as limitações da nossa inteligência."Norbert Wiener(1)

Não há ganho sem uma correspondente perda. Se inventar a substância, é, indiretamente, inventar o acidente, então quanto mais poderosa e eficiente a invenção, tanto mais dramático o acidente.
Eventualmente, chegará o dia fatal em que o progresso do conhecimento se tornará intolerável, não somente devido ao seu mau uso, como também em função dos seus efeitos — o próprio poder de sua negatividade.
Tivemos a confirmação desse fato no decorrer do século XX, antes pelo nuclear, depois através da corrida pelas armas termonucleares, onde as próprias armas, em última instância, se tornaram impossíveis de usar e condenaram os protagonistas à dissuasão.... a maior dissuasão possível.
O próprio poder das armas atômicas também marca o limite final daquele poder, o qual de súbito se tornou impotência... Neste caso, é a terrível inutilidade deste tipo de arma que constitui o acidente.
Ao invés de combater de verdade, as equipes militares se empenham em exercícios imaginários de um "jogo-de-guerra" de somatória zero, no qual a virtualidade é meramente a marca da falta de conseqüência política das nações, já que as conseqüências passam a não ter, praticamente, qualquer importância, sendo enormes demais para serem apreendidas seriamente e terríveis demais para serem testadas apropriadamente... exceto para um louco — pelo perpetrador prospectivo de um ataque suicida contra a humanidade.
Sobre isso, vejamos o que Friedrich Nietzsche tem a dizer em seu ensaio, "O Nascimento da Tragédia", escrito nos anos seguintes à guerra franco-prussiana de 1870: "... uma cultura baseada nos princípios da ciência deve ser destruída quando começa a crescer de maneira ilógica, ou seja, a se omitir frente às suas próprias conseqüências. Nossa arte revela esse mal-estar universal."(2)
Se, efetivamente, "na tragédia, o estado de civilização é suspendido"(3), então, com ela, o inteiro espectro do conhecimento benéfico desaparece. Portanto, na guerra total, a repentina militarização da ciência, requerida para a presumida vitória dos oponentes, reverte toda a lógica e a sabedoria política, a ponto que a antiga filosofia é seguida pelo absurdo de uma filanóia(4), responsável por destruir o conhecimento acumulado através dos séculos... "O poder humano, aumentado excessivamente, transforma-se então em causa de ruína"(5), despejando a totalidade da cultura das nações no vazio das causas perdidas — causas irremediavelmente perdidas, seja em caso de derrota seja de vitória, já que não é possível desinventar um conhecimento ao mesmo tempo terrorista e sacrílego para a inteligência científica.
De forma que, assim como há períodos de mau tempo na natureza, há também períodos de mau tempo na cultura e precisaríamos de uma "meteorologia" positiva da invenção para tentar evitar os temporais do artifício do Progresso do Conhecimento — aquele espírito que gera a potencialização extrema dos nossos instrumentos e das nossas substâncias e, conjuntamente, dos acidentes industriais e pós-industriais; estou pensando em primeiro lugar, na genética e na tecnologia da informação, que se seguiram às depredações forjadas pelo progresso atômico, cuja verdade atroz nos foi revelada em primeira mão por Hiroshima, depois por Chernobyl.
"É impressionante aquilo que não podem fazer aqueles que tudo podem fazer", declarou Madame Swetchine no século 19 (6). Esse aforisma resume perfeitamente o paradoxo do século XX e suas revoluções seriais, assim como tantas armas empregadas contra a inteligibilidade do mundo.
Hoje, no início do século XXI, quando a globalização que tanto ouvimos elogiar é, em primeiro lugar e principalmente, o fruto proibido da árvore do conhecimento (em outras palavras, da chamada "revolução da informação"), o predador está dando lugar para o exterminador, e o capitalismo simples para o terrorismo.
Como o extermínio é, de fato, a conclusão ilógica da acumulação, o Estado suicida não é mais tão somente psicológico, associado à mentalidade de um número de indivíduos perturbados, mas sociológico e político, até o ponto em que o acidente generalizado anunciado por Nietzsche agora incorpora aquela dimensão de pânico na qual a filosofia do Iluminismo dá lugar ao amor da loucura das grandezas, uma filanóia de proporções gigantescas. É isso o que significa, efetivamente, esse acidente do conhecimento, o qual complementa o acidente da substância que deriva da pesquisa tecno-científica.
E, se há três dimensões na matéria — massa, energia e informação, então depois das longas séries de acidentes relacionados com a matéria e a energia do século passado, o tempo ao alcance da mão no presente é o do acidente lógico — e mesmo o acidente biológico, à medida em que observamos a pesquisa teratológica da engenharia genética.
"As máquinas declararam guerra a Deus", escreveu Karl Kraus famosamente, enquanto a carnificina da Primeira Guerra Mundial estava começando(7)... Mas, como é que as coisas estão, hoje em dia, na era de uma globalização tão decantada pelos advogados do Progresso?
A globalização do conhecimento, um produto da revolução das telecomunicações, não somente reduziu o campo da atividade humana a nada, graças à sincronização da interatividade, como está causando uma mutação histórica na própria noção de acidente.
O local, acidente precisamente situado, de repente deu lugar à possibilidade de um acidente global, o qual não mais diria respeito meramente a "substâncias" — a substância do mundo na era do tempo real das trocas — mas o conhecimento que temos da realidade, aquela visão do mundo que previamente sustentava nossas ciências.
Assim, depois do acidente da substância, com o século que acaba de iniciar, estamos inaugurando um acidente sem paralelos, um acidente da realidade, o acidente do tempo e do espaço, e da matéria substancial totalmente desconhecida aos cínicos, mas que foi introduzida gradualmente pelos físicos da relatividade no decorrer da guerra total.
"O tempo é meramente uma ilusão", declarou Einstein, durante aquele período que separou a Primeira da Segunda Guerras Mundiais. Um acidente do conhecimento histórico, ou, em outras palavras, da percepção das coisas — uma desrealização positiva — este, o produto de uma realidade agora em vôo acelerado, como as galáxias na expansão do universo, uma desrealização cujas devastações já tinham sido pressentidas por Werner Heisenberg quando ele escreveu, há cinqüenta anos: "Ninguém sabe o que será real para o ser humano no fim das guerras que estão agora começando."(8)
Finalmente, depois da implosão da Guerra Fria entre o Oriente e o Ocidente, a globalização é, antes de mais nada, um tipo de jornada ao centro da terra, no brilho escurecedor de uma compressão temporal que confina o espaço vital da raça humana de uma vez por todas, algo que alguns utópicos denominaram de sexto continente, embora se trate simplesmente do hiper-centro de nosso ambiente.
Tanto origem quanto fim de um mundo que está agora barrado, onde todos estão crescentemente atraídos por essa região central, sem extensão espacial ou temporal, a qual é simplesmente o auge, o terminal daquela aceleração da realidade, a qual esmaga nossos cinco continentes e sete mares entre si, mas, e isto é muito importante, comprime juntos as nações e os povos do mundo todo.
Uma compressão telúrica da história da humanidade, cujo escopo não se registra em nenhum sismógrafo, apesar dos ecologistas; a compressão daquele cataclisma onde tudo é repassado pelo telescópio, e que colide com todo o resto a cada momento e onde todas as distâncias são reduzidas a nada, despedaçadas por acidente do tempo real da interatividade; um estremecimento da terra inteira, onde os eventos não são mais nada do que acidentes simultâneos, atemporais, na superfície de um objeto celestial excessivamente comprimido, e onde a gravidade e a pressão atmosférica são ulteriormente reforçadas pela sincronização instantânea das trocas.
Nesse nível de desassossego, a ecologia não é tanto a da natureza, quanto a ecologia da cultura, e seu efeito de amadurecimento de catástrofes etológicas. Efetivamente, com o engolir das proporções, dos períodos e das escalas de tempo, a abolição instantânea de todos os intervalos a favor da imediatez, a poluição das distâncias em escala de tamanho natural do globo nos ensina infinitamente mais que a poluição das substâncias da natureza sobre o drama, a tragédia do conhecimento futuro. Na terrível compressão das extremidades de um mundo outrora gigantesco em direção ao Centro, o hiper-centro do único planeta habitável no sistema solar, "A Natureza pode confiar no Progresso; ela irá vingar-se dele pelo abuso que ele perpetrou contra ela."(9)
Em conclusão, permitam-me fazer três perguntas: a ciência deve tranqüilizar? Ou, ao contrário, a ciência deve assustar? E, finalmente, a ciência é desumana?(10) Essas perguntas todas lançam uma luz considerável sobre a famosa "Crise do Progresso", assim como o fazem na, de modo nenhum subsidiária, crise das recentes mediatizações das descobertas — aquele "expressionismo científico" subscrito por certos loucos/cientistas, tais como o ginecologista Severino Antinori, o "Doutor Fantástico" da procriação assistida, ou o especialista em câncer Friedhelm Hermann, acusado no outono de 1999 por uma comissão alemã responsável por detectar fraude nos laboratórios científicos de ter falsificado os resultados de sua equipe, causando, nas palavras da imprensa especializada, um verdadeiro "Chernobyl científico!"(11)
Vamos lembrar aqui que a pesquisa científica não pode se valer da liberdade de expressão da imprensa sensacionalista sem acabar, mais cedo ou mais tarde, na filanóia de uma ciência não só privada de consciência, como privada de sentido!
Ontem a bomba atômica, hoje a bomba informacional, amanhã a bomba genética? Quando, em agosto de 2001, o professor Antinori apresentou à Academia Americana de Ciências seu plano para fazer nascer cerca de 200 crianças por clonagem reprodutiva, prometendo aos "pais" crianças perfeitas, mesmo se isso significasse eliminar as imperfeitas, o que é isso senão alucinação demiúrgica? Prova de que, como se fosse necessário, na ciência, como em outros campos, o pior às vezes realmente acontece (12).
Com o evento radioativo de Chernobyl, os organismos geneticamente modificados, a clonagem de seres humanos, etc. — os especialistas científicos agora ocupam o centro das controvérsias desses primeiros dias do terceiro milênio. Daí a criação de agências especializadas em administração de risco, de modo a tentar predizer o improvável e o impensável em questões técnicas e científicas, já que há décadas temos sido indefesos face aos maiores riscos que afetam o equilíbrio biológico e social da humanidade(13). A partir desse ponto de vista em particular, do "acidente do conhecimento", não é tanto o número de vítimas que se destaca como a própria natureza do risco que se corre. Em contraste com os acidentes rodoviários, ferroviários e aéreos, o risco não é mais quantificável e estatisticamente predizível — tornou-se inexpressível e profundamente impredizível, a ponto de causar a emergência de riscos sem paralelos, risco não mais localizado simplesmente na dimensão ecológica, mas na escatológica, já que afeta o poder de antecipação da mente, ou seja, da racionalidade em si(14).
"A ruína da alma", escreveu Rabelais, falando do conhecimento sem consciência — e isso nos dá uma outra perspectiva hoje para abordar os problemas do fim da vida, num período em que a questão da eutanásia da humanidade está na agenda, como conseqüência inevitável de um crepúsculo das bases, o qual parece não suscitar nenhum tipo de apreensão
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Notas
(1)Norbert Wiener, God and Golem Inc. (London/Cambridge, Mass: MIT Press, 1962), p. 69.
2)Nietzsche, The Birth of Tragedy and other writings (Cambridge: Cambridge University Press, 1999).
(3)Ibid.
(4)A love of madness.
(5)Henri Atlan, La Science est-elle inhumaine? (Paris : Éditions Bayard Centurion, Collection ‘Temps d’une Question’, 2002).
(6)Victor Hugo, Things Seen, Madame Swetchine, uma amiga do Frade Henri Lacordaire, era uma cristã-democrata.
(7)In these great times (Manchester: Carcanet, 1984), p. 80.
(8)Werner Heisenberg, Physics and Philosophy.
(9)Kraus, op. cit., p. 56.
(10)Henri Atlan, op. cit.
(11)"Hernamm, docteur es fraude" (Libération, 26 de outubro de 1999),
(12)´ Le savant fou ª (La Croix, 8 de agosto de 2002).
(13)Hatchuel, Armand et al., Experts et in Organizations (Berlin : Walter de Gruyter, 1995).
(14)Depois da estratégia atômica conhecida como "du faible au fort" (do fraco ao forte), que justificava a extensão do conceito de ‘deterrence’ (dissuasão intimidatória) entre os estados com o "force de frappe" francês, em 1990 assistiu-se a uma campanha começada para a estratégia conhecida como "du faible au fou" (do fraco ao louco), como meio de lidar com os problemas da proliferação nuclear. Ver Ben Cramer, Le nucléaire dans tous sés états (Paris: Éditions Alias, 2002.)
 
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