15 julho 2008

A ARTE DO MOTOR . Paul Virilio
Tradução de Paulo Roberto Pires . Estação Liberdade, 1996, pg 91-96

A questão da técnica é inseparável da do lugar da técnica. Da mesma forma que é impossível apreender a NATUREZA, sem abordar ao mesmo tempo a questão do TAMANHO NATURAL, tornou-se inútil falar do desenvolvimento das tecnologias, sem se perguntar imediatamente sobre a dimensão, o dimensionamento das novas técnicas.
Depois da superestrutura e da infra-estrutura ontem, pode-se prever a partir de então um terceiro termo, a intra-estrutura, já que a recente miniaturização nano-tecnológica favorece agora a intrusão fisiológica, ou mesmo a inseminação do ser vivo pelas biotecnologias.
Depois de, já há muito tempo, ter contribuído para a colonização da extensão geográfica do corpo territorial e da espessura geológica de nosso planeta, o recente desenvolvimento das ciências e das tecnologias chega hoje à progressiva colonização dos órgãos e das vísceras do corpo animal do homem; a invasão da microfísica concluindo a da geofísica. Última figura política de uma domesticação em que, depois das espécies animais geneticamente modificadas e das populações humanas submetidas em seus comportamentos sociais, o que começa agora é a época dos componentes íntimos.

Efetivamente, hoje o lugar das técnicas de ponta não é mais tanto o ilimitado do infinitamente grande de um ambiente planetário ou espacial, mas o infinitamente pequeno de nossas vísceras, das células que compõem a matéria viva de nossos órgãos.

A perda, ou mais exatamente o declínio do espaço real de toda extensão ( física ou geofísica) em benefício exclusivo da ausência de intervalo das tecnologias do tempo real resulta inevitavelmente na intrusão intraorgânica da técnica e de suas micromáquinas no seio do que vive.
Efetivamente, o fim do primado das velocidades relativas do transporte mecânica e a emergência da súbita primazia da velocidade absoluta das transmissões eletromagnéticas liquidam, com a extensão e a duração do “mundo próprio”, o privilégio ontológico do corpo INDIVI, este “corpo próprio” que sofre por sua vez o ataque das técnicas, a fratura molecular e a intrusão das biotecnologias capazes de povoar suas entranhas.Dessa forma, a miniaturização dos motores, dos emissores-receptores e de outros microprocessadores está, neste fim de milênio, no cerne da questão da técnica e, portanto, do DESIGN PÓS-INDUSTRIAL.
Desde a revolução industrial, e daquela provocada pelas revoluções instantâneas da era dos grandes meios de comunicação de massa, começa a gora a última das revoluções, a dos TRANSPLANTES, o poder de povoar, digo, de alimentar o corpo vital com técnicas estimulantes, como se a física (a microfísica) se prestasse a concorrer a partir de então com a química da nutrição e com os produtos dopantes...

Desde a noite dos tempos, o desenvolvimento da técnica se dá em direção ao horizonte terrestre e à superfície dos continentes, com a invenção dos sistemas hidráulicos, dos canais e das pontes e aterros; megamáquinas das quais as empresas ferroviárias e rodoviárias deveriam ser a realização plena graças ao equipamento das cidades, com as linhas elétricas ou o cabeamento completando o que a revolução do deslocamento físico já havia conseguido, e nos preparamos agora para equipar a espessura do que vive com micromáquinas suscetíveis de estimular eficazmente nossas faculdades, o inválido equipado para superar sua deficiência transformando-se subitamente em modelo para o válido superequipado com próteses de todos os tipos.
É preciso portanto nos rendermos às evidências. Se antes a invenção da nutrição e dos diferentes hábitos alimentares resultou em uma “arte de viver” e de permanecer, graças à inovação do sedentarismo agrícola e, mais tarde, urbano, hoje a renovação das práticas nutricionais pela ingestão não somente de excitantes e de estimulantes químicos, mas também de estimulantes técnicos, irá logo favorecer uma mutação comportamental que não deixará de agir sobre o habitat. O METADESIGN dos costumes e dos comportamentos sociais pós-industriais toma o lugar do DESIGN DAS FORMAS DOS OBJETOS da era industrial.

Lembremo-nos das declarações de Nietzsche, no fim de sua vida, em Ecce Homo: “Uma questão me interessa muito mais, e da qual o estatuto da humanidade depende bem mais que de não sei que curiosidade de teólogos: a questão da nutrição. Podemos formulá-la assim: como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de virtude?”(1) A esta pergunta, as tecnociências começam a dar a sua resposta. Depois da ingestão de alimentos reconstituintes, frutos da agricultura, preparam para nos fazer digerir, nos alimentarmos de produtos dopantes de todas as origens, não somente químicos com a voga dos excitantes modernos _ como o álcool, o café, o fumo, a droga, os anabolizantes _ mas também técnicos como os produtos da biotecnologia, as pastilhas inteligentes, capazes, diz-se, de superexcitar nossas faculdades mentais. Vejamos o que escreveu, em 1838, Honoré de Balzac, antecipando em meio século as intuições de Nietzsche: “Todo excesso se baseia em um prazer que o homem quer além das leis ordinárias promulgadas pela natureza. Quanto menos a força humana é ocupada mais ela tende ao excesso. O que ocorre a partir daí é que, quanto mais as sociedades são civilizadas e tranqüilas, mais elas optam pelo caminho do excesso_ para o homem social, viver é gastar-se mais ou menos rapidamente”(2).

Não se pode descrever melhor o estado dos lugares de nossa pós-modernidade onde os superexcitantes são o prolongamento de uma sedentariedade metropolitana em vias de generalização acelerada, notadamente graças a essa teleação que substitui doravante a ação imediata... A inércia, a passividade do homem pós-moderno exige um acréscimo de excitação, não somente através das práticas esportivas abertamente desnaturalizadas, mas também no caso de atividades cotidianas em que a emancipação corporal devida às técnicas de teleação em tempo real liquida as necessidades tanto de vigor físico quanto de esforço muscular.
Finalmente, a invenção do marca-passo cardíaco, capaz de reproduzir, de suplantar o ritmo da vida, foi um dos pontos de partida desse tipo de inovações bio-tecnológicas. Depois dos “xenoimplantes” de órgãos animais, temos agora os “tecnoimplantes”, a mistura do técnico e do vivente, a heterogeneidade orgânica não sendo mais e de um corpo estrangeiro acrescentado ao próprio corpo de um paciente, mas a de um ritmo estrangeiro suscetível de fazê-lo vibrar em uníssono com a máquina.
Como supor, a partir de então, que as coisas continuam na normalidade? Que esta súbita superexcitação do ritmo cardíaco por uma prótese não se prolongará amanhã por novos excessos, pela invasão de outros procedimentos de aceleração de biorritmos julgados excessivamente lentos?
Efetivamente, trata-se da realização, quase um século depois, do sonho dos futuristas italianos: o corpo do homem integralmente alimentado pela técnica graças à miniaturização das “máquinas-micróbios” invisíveis ou quase, guardando entretanto uma diferença fundamental na ordem de grandeza da velocidade, já que não se trata mais, como esperava Marinetti, de rivalizar com a aceleração dos motores transformando o corpo-locomotor do indivíduo no equivalente da locomotiva ou de uma turbina elétrica cujas velocidades relativas soa ultrapassadas _ mas antes de tentar aparelhar o corpo humano para torná-lo contemporâneo da era da velocidade absoluta das ondas eletromagnéticas. O emissor-receptor em tempo real sucederá, a partir de então, ao motor superpossante suscetível de percorrer rapidamente o espaço real dos territórios.

Lembremo-nos que, desde a origem da vida, a corrida é eliminatória: eliminatória para o predador capaz de alcançar sua presa mais rapidamente, igualmente eliminatória para as sociedades humanas incapazes de desenvolver a aceleração de sua produção e distribuição. Ora, nessa corrida, a concorrência selvagem elimina não somente o adversário (o animal excessivamente lento) mas também eliminam-se elementos de seu próprio corpo. Por exemplo, perde-se peso para ficar em forma, emagrece-se para melhorar os reflexos, os sinais nervosos... mas ao mesmo tempo elimina-se o território natural tornando-o mais “condutor” e retilíneo, é a invenção da INFRA-ESTRUTURA do estádio, do hipódromo ou do aeródromo, o espaço real do lugar da corrida tornando-se subitamente o produto do tempo real de um trajeto.
Dessa forma, o “corpo territorial” é, a exemplo do corpo animal do corredor ou do atleta, rigorosamente configurado, talvez integralmente reconstituído pela velocidade. Velocidade relativa de um deslocamento físico ontem, velocidade absoluta das transmissões microfísicas hoje, velocidade limite, verdadeira BARREIRA DA LUZ _ depois das do som e do calor_ em que a corrida, a concorrência vital, irão sofrer uma espécie de transmutação.
Uma vez que a escala de grandeza da aceleração atingiu o patamar insuperável (segundo a lei da relatividade) dos 300 mil quilômetros por segundo, perseguiremos agora a eliminação no interior da própria matéria viva, reconstituindo dessa vez a dinâmica vital, fagocitando o vivo, a própria vitalidade do sujeito. Não iremos mais somente provocar o desenvolvimentos dos músculos ou a flexibilidade das articulações através de exercícios rítmicos e dos produtos anabolizantes, mas estimular as funções nervosas, a vitalidade da memória ou da imaginação, promovendo uma reestruturação das sensações através de novas práticas mnemotécnicas.
Neste estado da história, a concorrência eliminatória suprime não mais o peso, para tornar o copo mais ágil e portanto mais apto à corrida, mas modifica os ritmos vitais, ocupa até mesmo os vazios do espaço intra-orgânico do sujeito acrescentando órgãos suplentes.
Marvin Minsky glorifica esse tipo d reconstrução fisiológica:Isso significa que você pode ter, dentro de seu crânio, todo o espaço que quiser para implantar sistemas e memórias adicionais. Então, pouco a pouco, você poderá aprender mais a cada ano, acrescentar novos tipos de percepção, novos modos de raciocínio, novas formas de pensar ou imaginar”(3).

Desta forma, o META-DESIGN das neurociências não se condiciona a encontrar uma forma da estrutura ou da infra-estrutura de um “objeto” industrial, mas regenera os impulsos dos neurotransmissores de um “sujeito” vivo, realizando desde então uma espécie de ergonomia cognitiva, último tipo de conexão neuroléptica que se poderia chamar de INTRA-ESTRUTURA do comportamento.
Lembremos, a propósito, uma evidência desconhecida resultante do declínio do primado da extensão do espaço geográfico em prol da extensão, recente, da ausência de duração do tempo cronográfico _ tornar o corpo e sua energia vital contemporâneos da era das tecnologias da transmissão instantânea é abolir, em um mesmo movimento, a distinção clássica entre o interno e o externo, em benefício de um último tipo de centralidade, ou mais exatamente, de hipercentralidade, a do tempo, de um tempo “presente”, para não dizer “real”, que suplanta definitivamente a distinção entre a periferia e o centro, como o comprimido contra o sono suprime a alternância entre o estar desperto e o repouso reparador.

Se antes, estar presente era estar próximo, fisicamente próximo do outro, em um face-a-face, um frente-a-frente em que o diálogo se torna possível através do alcance da voz ou do olhar, o advento de uma proximidade midiática fundada nas propriedades do domínio das ondas eletromagnéticas parasita o valor de aproximação imediata dos interlocutores, esta súbita perda de distância ressurgindo sobre o “estar-lá”, aqui e agora. Se a partir de então pode-se não somente agir, mas ainda “teleagir” _ ver, ouvir, falar, tocar ou ainda sentir à distância (4) _ surge a possibilidade inaudita de um desdobramento da personalidade do sujeito que não saberá deixar intacta por muito tempo a “imagem do corpo”, ou seja, a PROPRIOCEPÇÃO do indivíduo... Cedo ou tarde, esta íntima percepção da massa ponderável perderá qualquer evidência concreta, liquidando em um mesmo ato a clássica distinção entre o “de dentro” e o “de fora”. O hipercentro do tempo real do mundo próprio _ EXOCENTRAMENTO_ perdendo todo e qualquer sentido a noção essencial de ser e de agir, aqui e agora.

(1)Ecce Homo Ed. Brasileira com tradução de Paulo César Souza, Max Limonad, 1985
(2)Traité de excitants modernes, Castor Astral, 1992, p 22-23
(3)Art Press, número especial:”Nouvelles Technologies”, 1991
(4)Os primeiros captadores olfativos acabam de ser produzidos



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