17 outubro 2009

CIBORGUE: HUMANO E COMUNICAÇÃO
Fátima Regis de Oliveira, Fernanda Pizzi e Márcio Souza Gonçalves

As novas tecnologias informacionais da comunicação têm sido instrumento impulsionador de uma animada discussão sobre os processos de produção de subjetividade e o conceito de humano. No centro do debate, figura a problemática noção de ciborgue.

Este texto não pretende fazer um mapeamento global dos modos de inserções do ciborgue na dinâmica social da cibercultura. Seu objetivo é indicar como a noção de ciborgue aponta para uma modificação do modo como se pensa o ser humano, modificação esta que radicaliza a vinculação do conceito de humano aos processos de comunicação e às redes.
Iniciaremos discutindo algumas das definições de ciborgue. Tal discussão deve permitir um razoável mapeamento das diversas maneiras como nosso tempo concebe o ciborgue, o que remete nosso olhar para o contexto que deu origem ao termo.
Buscaremos então inserir o conceito de ciborgue no panorama cultural, social e histórico em que ele se originou. Tal contextualização surpreendentemente conduz à problemática do estatuto do homem e de sua relação com a comunicação e as redes.
Em última instância, trata-se de investigar de que modo o conceito de ciborgue colabora para que a comunicação se torne o paradigma central para a definição de humano.



O que é um ciborgue?


O termo ciborgue é uma contração de "organismo cibernético" (em inglês: cyborg - cybernetic organism) e foi inventado pelo engenheiro biomédico Manfred Clynes, em 1960. Clynes o definiu como "a mistura do orgânico com o maquínico, ou a engenharia da união entre sistemas orgânicos separados" (GRAY, MENTOR, FIGUEROA-SARRIERA, 1995, p.2).
Desde seus primórdios, a idéia de ciborgue traz a possibilidade de adaptação do homem a ambientes inóspitos, ampliação e/ou aprimoramento das capacidades humanas e substituição de "peças". A mescla com máquinas e circuitos cibernéticos promete incrementar as capacidades sensórias e cognitivas, aumentar a resistência e a durabilidade da espécie. Em um artigo pioneiro, Clynes e Kline ressaltam a importância de adaptar o homem aos ambientes extraterrestres inóspitos, revelando que sob a figura do ciborgue cultivam-se os sonhos de vencer as barreiras da exploração espacial.
Nas últimas décadas do século XX, na medida em que as tecnologias informacionais evidenciam as hibridações homem-máquina (biotecnologias penetram por sob a pele, as redes e softwares de computador otimizam tarefas cognitivas), a figura do ciborgue torna-se emblemática das discussões sobre a cibercultura. Ao mesmo tempo em que a idéia de ciborgue se populariza, as definições tornam-se mais amplas e genéricas, beirando uma indistinção conceitual.
Uma definição já clássica de ciborgue é a de Donna Haraway em seu Um manifesto para os ciborgues: "um organismo cibernético híbrido: é máquina e organismo, uma criatura ligada não só à realidade social como à ficção. (...) criaturas simultaneamente animal e máquina que habitam mundos ambiguamente naturais e construídos" (HARAWAY, 1994, p. 243-4).
As definições mais recentes de ciborgues incluem todo tipo de intervenção tecnológica, seja o uso de medicamentos (restauradores da saúde, psicotrópicos ou preventivos contra doenças), seja a conexão com instrumentos de mecânica, eletrônica ou informática. Para Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera:
Qualquer pessoa com um órgão, membro ou suplemento artificial (como um marca-passo), qualquer um reprogramado para resistir a doenças (imunizado) ou drogado para pensar/comportar-se/sentir-se (psicofarmacologia) melhor é tecnicamente um ciborgue (1995, p. 2).
Katherine Hayles defende uma visão semelhante:
Ciborgues realmente existem; estima-se que cerca de 10% da população atual dos E.U.A. são ciborgues no sentido técnico, incluindo pessoas com marca-passos eletrônicos, juntas artificiais, sistema automático de administração de medicamentos, lentes implantadas na córnea, e pele artificial. Um percentual muito maior participa em ocupações que os torna ciborgues metafóricos, incluindo o tecladista de computador unido a um circuito cibernético com a tela, o neurocirurgião guiado por um microscópio de fibra ótica durante uma operação e o adolescente que brinca com videogames no salão de diversões eletrônicas de seu bairro (In: Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera, 1995, p. 322).
André Lemos distingue dois tipos de ciborgue, o protético e o interpretativo. O primeiro refere-se aos indivíduos cujo funcionamento fisiológico depende de aparelhos eletrônicos ou mecânicos; "o cyborg interpretativo se constitui pela influência dos mass media coagido que é pelo poder da televisão ou do cinema. Assim, a cultura de massa e do espetáculo nos fez cyborgs interpretativos" (LEMOS, 2002, p. 187). Lemos refere-se ainda aos netcyborgs ou cyborgs interpretativos das redes. Estes, ao se organizarem a partir de conexões Todos-Todos, esvaziam o controle social operado pelos tradicionais media Um-Todos.
Em entrevista recente a Hari Kunzru, Donna Haraway defende que hoje somos todos ciborgues. A razão para tal afirmativa é que a vida atual implica uma relação tão estreita entre as pessoas e a tecnologia que não é mais possível distinguir onde termina o humano e começa a técnica (SILVA, 2000, p. 25). Para Haraway, ser ciborgue tem a ver com o corpo pensado como máquina de alta performance e com o humano entendido como um ser que habita redes. A intervenção técnica, que antes objetivava eliminar doenças e trazer o corpo de volta à sua normalidade, hoje visa a aprimorar as condições e o desempenho "normal" o corpo. O ciborgue refere-se à idéia de humano que se percebe profundamente conectado às outras pessoas, aos objetos e ao ambiente em que vive. Não como pessoas educadas a se pensarem como "seres que existem no interior de suas cabeças, como seres que apenas secundariamente entram em contato com o resto do mundo" (SILVA, 2000, p. 30). As linhas de produção de fábrica e redes de computadores são alguns exemplos de redes híbridas entre pessoas e máquinas.
Como nesta última definição de Haraway, alguns autores têm investido na idéia de que a relação humano-tecnologia é tão antiga quanto a história da humanidade.
Bruce Mazlish enfatiza que a produção de ferramentas como modo de interagir com o ambiente é definidora de nossa espécie. Defende que sob os questionamentos atuais sobre a natureza do humano e da técnica reside um longo percurso de co-evolução entre os homens e suas máquinas.
Chislenko nos propõe um teste em que, se respondermos sim à maioria das questões, então somos ciborgues. Entre as perguntas de Chislenko, figuram: "Você se sentiria constrangido e 'desumanizado' se alguém removesse sua coberta artificial (roupas) e expusesse seu corpo biológico natural em público? (...) Você recebe a maior parte de seu conhecimento sobre o mundo por meio de linguagem simbólica artificial, mais do que por meio da experiência sensorial natural?" (Apud LEMOS, 2002 p. 297).
Dessas definições, percebe-se uma grande oscilação no sentido do conceito de ciborgue: temos desde definições que fazem do ciborgue a própria natureza do humano (todo humano é ciborgue) até definições restritas que reservam o termo para uma pequena gama de casos (o ciborgue tem uma máquina dentro do corpo, como um marca-passo). Dada essa grande oscilação, problemática quando se tenta uma operacionalização do conceito, apostamos numa contextualização histórica como via fecunda de investigação.
O contexto
Como conceitos são históricos, cumpre pensar as nuances do contexto sociocultural em que o termo "ciborgue" foi criado, em 1960. É fundamental destacar como ele responde a um momento histórico específico e retrata a singularidade de um modo de pensar e de o indivíduo se situar em relação à cultura em que vive. Em paralelo, uma breve revisão da origem do conceito de rede desvela uma mesma contextualização, aquela do surgimento do computador, do mapeamento do DNA humano e da evolução da Internet. Decerto, esta coincidência não é fortuita, como se pretende explicitar a seguir.
Antes de mais nada, trata-se de uma época de inquestionável efervescência científica e cultural, cujos frutos provocaram ecos que desestabilizaram a ordem vigente. Para fins de análise, destaque será dado às invenções nos campos da Cultura, da Ciência e das Tecnologias de Comunicação que respondem e completam o percurso argumentativo até aqui desenhado .
O ano de 1968 é suficientemente emblemático para marcar os traços culturais do período em pauta. "Paz e amor"; "é proibido proibir"; "seja realista, peça o impossível"; "faça amor, não faça a guerra": essas curtas palavras de ordem definem com exatidão o espírito de 1968, talvez o ano mais carregado de simbolismos do século XX. Certamente, um ano de grandes convulsões: Guerra do Vietnã, protestos pacifistas, assassinatos, movimentos pela liberação sexual, racial, artística, cultural e política, manifestações estudantis, viagens espaciais, ditadura militar, ecologia, Tropicalismo, hippies.
A revolta dos estudantes em praticamente todo o mundo suscita um profundo questionamento da política tradicional, dos costumes, do autoritarismo, inserindo no cotidiano valores como pacifismo, feminismo e contracultura. Em breves linhas, assim corre 1968.
Nos domínios da ciência, a década de 1960 é inaugurada com entusiasmo, face às conquistas e experimentações que marcaram os anos precedentes. Em 1953, Francis Crick e James Watson descobrem a estrutura em dupla hélice do DNA. Em 1956, anuncia-se o número de cromossomos humanos: 46. Seguem experimentos que culminam com a descoberta da enzima que corta os filamentos do DNA, viabilizando sua recombinação (1970), e com a criação da técnica que permite copiar fragmentos de DNA (1985).
Estavam lançadas as bases para o que, em 1990, vai definir o Projeto Genoma Humano: a decodificação e a identificação do material genético do homem.
No que diz respeito às tecnologias de comunicação, a década de 1960 é cenário dos acontecimentos e da invenção dos dispositivos técnicos que possibilitaram a implementação material da Internet. É também palco dos movimentos sociais, filosóficos e políticos a partir dos quais é formulada a teoria que embasa a rede (PIZZI, VAZ, 2003).
Com os anos 60, ganham força os três processos independentes cuja união responde pela propagação da Internet: "as exigências da economia por flexibilidade administrativa e por globalização do capital, da produção e do comércio; as demandas da sociedade, em que os valores da liberdade individual e da comunicação aberta tornam-se supremos; e os avanços na computação e nas telecomunicações possibilitados pela revolução da microeletrônica" (CASTELLS, 2003, p.8). Em função dessa multiplicidade de atores, instituições e movimentos sociais e políticos envolvidos na evolução da rede, convém selecionar os mais determinantes para seu desenvolvimento: o barateamento, a miniaturização e o aumento do poder de processamento do computador; a comutação por pacote; a Arpanet; a interface gráfica e o mouse; o protocolo TCP/IP; o e-mail; e a WWW .
Início dos anos 1960: o mundo vive a bipolaridade instaurada pela Guerra Fria (1945-89). A ARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada) é criada com o intuito de assegurar a superioridade americana frente aos russos. Para evitar que os E.U.A. perdessem o controle sobre seu arsenal balístico em caso de um ataque nuclear, e para garantir a sobrevivência e a eficiência dos sistemas de comunicação, é proposto um sistema de transmissão de mensagens: a comutação por pacote . "Os conceitos-chave do sistema eram flexibilidade, descentralização e automação da inteligência e da decisão, tolerância à diversidade e robustez" (PIZZI, VAZ, 2003, p.168), um prelúdio às características da arquitetura aberta da Internet .
Em 1969, uma linha telefônica permite que os modems de dois computadores remotos se comuniquem: o resultado é a Arpanet , origem da Internet.
O que dá forma à interação usuário - computador é a interface gráfica, que traduz toda a informação digital em imagens analógicas do nosso dia-a-dia. Extensivo à interface gráfica é o "princípio da manipulação direta", qual seja conferir ao usuário controle sobre as imagens e a execução das tarefas de maneira a tornar crível a sensação de que se está efetivamente mexendo com a informação. A ferramenta que torna isso possível é o mouse . A tecnologia passa então a ser vista como um espaço a ser explorado, e não mais como uma prótese ou um anexo ao corpo (JOHNSON, 1997). Própria dessa concepção de tecnologia é a noção de imersão, a idéia de um homem se projetar num mundo, entrar nele e perder suas fronteiras .
O surgimento de aplicações como o e-mail e a World Wide Web assevera a tendência de desenvolvimento informal, descentralizado e guiado pelo usuário.
Apresentado em 1972 por Ray Tomlinson, o e-mail permite o envio de mensagens individuais, de pessoa para pessoa, multiplicando caminhos e abrindo conexões antes inexistentes. Com isso, "promove uma mudança do sentido e da topologia da rede, que passa de mecanismo de distribuição de recurso escasso a meio de comunicação" (PIZZI, VAZ, 2003, p.171).
Em 1974, Bob Kahn e Vinton Cerf apresentam o TCP/IP (Transmission Control Protocol/ Internet Protocol), que visa a unificar a linguagem de todos os sistemas conectados. Esse protocolo torna possível a interação e permite à rede tolerar a diversidade com mais vigor, o que torna a rede mais mutável e seu crescimento ilimitado. Finalmente, o que permite à Internet abarcar o mundo todo é o desenvolvimento da World Wide Web (ou WWW), aplicação que permite obter e acrescentar informação de e para qualquer computador conectado através da Internet.
Ora, o que essa retrospectiva permite inferir acerca da história da Internet? Uma primeira inferência pode ser a articulação entre a história da Internet e a crise dos mediadores que representam o interesse geral (BOLTANSKI, 1993). Esta conexão permite esclarecer como os protestos anti-autoridade que convulsionaram a década de 1960 são cruciais para explicar certas invenções tecnológicas - o PC, a interface gráfica, o modem - e justificar o interesse dos indivíduos pela Internet: um lugar onde poderiam, enfim, superar a restrição dos mediadores tanto no acesso quanto na distribuição de informações . Retomemos, pois, os questionamentos de 1968.
Como descrito acima, "os movimentos de maio de 1968 convidam a explorar os limites da sensibilidade corporal e da consciência e endereçam uma crítica à estreita concepção de sujeito em vigor. (...) Está em jogo o direito à diferença e a um futuro diferente do presente" (PIZZI, VAZ, 2003, p.169).
Por participar de uma visão crítica ao reducionismo e conceber uma ordem conexionista, o conceito de rede é usado pelos teóricos de 1968. Eis uma segunda inferência: a relação direta entre a evolução da Internet e a mudança semântica do conceito de rede .
No início da década de 1960, a palavra rede é raramente usada para se referir à sociedade e, quando o é, tem um sentido negativo. No comportamento humano, a rede indica o que prende ou limita. Um outro sentido designa associações secretas e que operam em oposição às regras públicas de justiça, como rede de criminosos. No sentido técnico, a rede é sinônimo de canais fixos de circulação de algum fluxo - energia, informação, água e esgoto. Nos anos 1990, em contraste, o uso social do conceito enfatiza a transgressão de fronteiras, a abertura de conexões, a multiplicidade, a flexibilidade, a transparência e o acesso de todos à informação. Pela ausência de centro e de margem, a rede passa a simbolizar o ilimitado. Na ciência, torna-se o arquétipo de tudo o que é interdependente e complexo.
A história da tecnologia mostra que os usuários são os principais produtores do objeto técnico, adaptando-o a seus usos e valores. A história da ciência, por sua vez, prova como uma invenção científica permite modificar as trajetórias do pensamento.
Este trajeto lança luz sobre a relação entre tecnologia de comunicação e cultura (ou valores e técnica), articulação esta que aponta, em última instância, para as mudanças possíveis no que o humano pensa ser. Dada a confusão conceitual que destacamos inicialmente e as informações advindas de nossa contextualização do ciborgue, encaminhamos a hipótese de tomar o conceito não como descrição de nossa relação empírica com a máquina (descrição confusa dadas as definições do termo), mas como sinal de transformações na relação que o humano mantém consigo, ou seja, na forma como o homem se pensa. Entra em questão a ontologia do humano e a comunicação.
O que é o humano?
Como vimos acima em nossa contextualização, as tecnologias de comunicação e as biotecnologias permitem novas formas de conexões e fazem proliferar técnicas de intrusão sob a pele, produzindo hibridações entre humanos e máquinas. Essas técnicas colocam em questão a integridade do corpo e a identidade de humano, gerando o que tem sido chamado de crise do corpo. Crise que é mais profundamente a da imagem do corpo do humano com indumentárias de razão, desejo, linguagem e subjetividades. Ao se retirar essa "pele", o que sobra é a "rude carne".
A desnaturalização do corpo incita todo tipo de troca, não apenas entre organismos biológicos. Torna-se possível uma vasta gama de hibridismos, transplantes e conexões entre seres vivos e mortos, orgânicos e minerais, organismos humanos e animais, componentes orgânicos e maquínicos.
As possibilidades de trocas e novas conexões conduzem ao esgarçamento das fronteiras entre interior e exterior. No âmbito da interiorização das tecnologias temos artefatos cada vez mais miniaturizados e biocompatíveis reconfigurando o espaço interno do corpo e sua relação com o mundo externo. Além dos já usuais marca-passos e placas metálicas conectando ligamentos rompidos, a biotecnologia trabalha no desenvolvimento de implantes e próteses subcutâneos, como, por exemplo, a criação de retinas artificiais usando microchips com capacidade de devolver a visão humana (Cf. KAC, s/d, p. 240).
Essas possibilidades de próteses, implantes, transplantes permitem a ruptura do conceito moderno de humano - uno, estável, baseado na separação entre o eu (humano) e o outro (animais, máquinas) - favorecendo a idéia de que o humano não é um conceito absoluto com fronteiras interior / exterior, orgânico / inorgânico bem definidas, mas um ser que se constrói em conjunto com a tecnologia que produz e o ambiente em que habita, tornando-se um ser híbrido e mutante.
O ideal de naturalidade, pureza e unidade do corpo próprio moderno demarca a impossibilidade de mistura com os corpos animais e os aparatos técnicos. A intervenção médica ou técnica sobre o corpo ocorre apenas em caso de doença com o objetivo de fazê-lo voltar à sua funcionalidade "normal". O corpo orgânico que dá concretude física e conceitual ao corpo próprio hoje é entendido como uma prótese originária, que não apenas podemos, mas devemos submeter a toda e qualquer intervenção capaz de melhorar sua performance.
A idéia de um corpo como um invólucro que determina os limites espaciais da experiência vai sendo substituída pela noção de um corpo equipado com sensores, interfaces e aparatos tecnológicos que ampliam e amplificam suas capacidades físicas, sensoriais e cognitivas, o que nos leva ao problema das redes .
Com efeito, é partindo dessa concepção de um indivíduo "ampliado" que William J. Mitchell escreve seu Me ++ - The Cyborg Self and the Networked City (2003). Em relação ao título, Mitchell (MCCLELLAN, 2003) afirma que "Me++ é uma brincadeira com C++, a linguagem de programação popular. Entre programadores, '+' significa incrementado ou estendido, de forma que Me++ sugere o ser estendido computacionalmente". Mitchell aponta que "não mais devemos nos pensar como indivíduos fixos, discretos, mas como nós em uma rede. 'Eu sou parte das redes e as redes são parte de mim. (...) Eu me conecto, logo sou'" (MCCLELLAN, 2003). E é num cenário de "'realidade aumentada' (AR), em que computação ubíqua e redes wireless móveis são usadas para nos reconectar ao mundo real" (MCCLELLAN, 2003) que essas transformações estariam ocorrendo.
Essa mobilidade própria das tecnologias wireless precipita mudanças na arquitetura e nas cidades, que Mitchell (MCCLELLAN, 2003) afirma serem "produtos de fronteiras e redes. No passado, as fronteiras eram mais importantes - a imagem de uma cidade na era medieval é sempre aquela cercada de muros. Agora, as redes são mais proeminentes: o mapa do metrô de Londres é um dos grandes ícones da cidade". Em termos de arquitetura, isso se traduz em "flexibilidade".
Conclusão

Podemos tomar o conceito de ciborgue de dois modos distintos, segundo o encaremos como descrição da realidade ou como traço indicativo de um certo modo de pensar.
Tomá-lo como conceito que descreve uma certa forma de relação com a máquina é a maneira usual de compreendê-lo e é desse modo que normalmente é utilizado.
Como vimos acima, esse caminho conduz a alguns impasses. Assim, por exemplo, o precoce uso humano da tecnologia pode nos levar a aventar a possibilidade de que a hibridação homem-máquina possa ser muito mais antiga, remetendo à própria aurora da humanidade. A pedra lascada já indicaria a presença do ciborgue. Nesse sentido, o ciborgue seria um conceito que definiria a própria espécie humana e não a experiência de alguns humanos em particular (o humano moderno, no sentido antropológico). Seríamos todos homens de seis milhões de dólares, alguns apenas mais baratos do que outros, uma diferença apenas de grau, portanto. A distância que separa a pedra lascada das próteses biomecânicas é uma distância que não implica em quebra qualitativa: uma prótese biomecânica é uma pedra lascada melhorada.
Invocar a invasão do corpo pelo objeto técnico, por exemplo, não resolve a questão, pois a categoria ciborgue deixaria então de se aplicar em uma série de casos em que usualmente a aplicamos, como o do soldado equipado com lentes de visão noturna e uma série de parafernálias de extensão da potência dos sentidos que dele fazem um supersoldado; ou o do corredor sem pernas que se serve de próteses de última geração para correr a prova dos cem metros rasos.
Todos esses impasses giram em torno da definição do ciborgue e, sendo várias e heterogêneas as definições, terminam por tornar problemático o uso do conceito na atualidade.
O conceito de ciborgue, no estado atual do campo em que é utilizado, se afigura assim bastante inapropriado como conceito descritivo das práticas humanas de jogo com a máquina, das práticas de subjetivação (GONÇALVES, 2003) que põem em jogo elementos maquínicos. Tanto no que se refere à hibridação corporal quanto subjetiva, sua capacidade de recorte é pequena. O conceito se trivializou. Talvez essa trivialização se deva ao fato de que hoje estamos distantes (apesar de próximos temporalmente) do contexto que deu origem ao termo.
Mas nos interessa nesse ponto sobretudo explorar a segunda via destacada acima para abordar o conceito de ciborgue: tomá-lo como indicativo de um certo modo de pensar. Assim como tomamos o cogito cartesiano não para compreender o funcionamento mental dos homens do século XVII, mas sim para compreender o modo como funciona a filosofia cartesiana, podemos tomar o ciborgue para compreender como "filosofamos" sobre nós mesmos.
Seguindo nessa direção, toda a temática do ciborgue, independente de ser um conceito operacional para a descrição dos relacionamentos entre homem e máquina, seria interessante na medida em que reveladora de um certo modo de percepção de si próprio pelo humano. A temática do ciborgue revelaria algo sobre nosso Eu Secreto (FIEDLER, 1993, p.308).
Trata-se portanto de tomar o tema do ciborgue como sintoma de alterações na maneira como nos pensamos e nos compreendemos, sintoma portanto de transformações na ontologia do humano característica de nossa época.
O surgimento e a disseminação do ciborgue como tema recorrente indicam uma alteração no modo como nos vemos. Que alteração?
O homem sempre se serviu de outros para construir sua própria identidade. Assim, a oposição aos deuses e aos animais, sucedida pela oposição às máquinas, deu origem a diversas e diferentes ontologias do humano, visões do que seja o homem. Sempre se tratou de se estabilizar uma certa essência definidora do humano e essa estabilização sempre passou pela alteridade.
Descartes, por exemplo, se serve dos animais para em oposição pensar o homem como um animal que tem alma, definição que poderia recuar até a Grécia antiga e a definição do homem como animal racional.
O mesmo, bem amarrado e definido que caracterizava o humano, precisava de um outro igualmente amarrado e definido para em contraposição a ele se afirmar. Curioso caminho de interpretação que pode nos conduzir até o jogo entre senhor e escravo de que falou Hegel. O tema do ciborgue parece indicar uma mudança nesse estado de coisas.
Podemos arriscar o sentido dessa mudança: nos encontramos numa situação singular da cultura ocidental, pois o tema do ciborgue e a hibridação que coloca nos lançam numa situação em que a alteridade desaparece, é interiorizada.
Com o ciborgue, a máquina, nosso outro, passa a fazer parte de nós, ficamos sem outro, sozinhos.
Instala-se assim uma radical imanência.
Essa imanência tem um efeito curioso: se a presença do outro garantia a estabilidade do mesmo, a interiorização e/ou desaparecimento desse outro acaba por desestabilizar o mesmo. Radicalmente, mesmo e outro perdem o sentido...
O homem se encontra assim numa situação singular quando pergunta pelo seu próprio ser: perdeu as referências opositivas que permitiam a resposta. Situação perigosa.
A primeira resposta que parece estamos dando a essa nova situação é uma tentativa de recuo. Retomamos o paradigma que define as máquinas de comunicação, especialmente as mais atuais, e tentamos nos definir a partir desse paradigma: tudo deve então ser redutível à informação. Os diversos caminhos da biologia, da psicologia e da neurociência passam por essa retomada da máquina, ou do modelo maquínico, como aquilo que deve ser capaz de definir o humano. A comunicação passa a ocupar o lugar que já foi da física como paradigma maior. Não há especificidade humana, tudo é redutível à informação.
Deleuze, num belo texto sobre um livro de Tournier e num contexto absolutamente diferente, fala do desaparecimento do outro e liga esse desaparecimento ao tema nietzscheano da Grande Saúde:
Um mundo sem outrem. Tournier supõe que através de muitos sofrimentos Robinson descobre e conquista uma grande Saúde, na medida em que as coisas acabam por se organizar bem diferentemente do que fariam com outrem presente, porque liberam uma imagem sem semelhança, um duplo delas próprias ordinariamente recalcado e que este duplo, por sua vez, libera puros elementos ordinariamente prisioneiros. Não é o mundo que é perturbado pela ausência de outrem, ao contrário, é o duplo glorioso do mundo que se acha escondido por sua presença" (DELEUZE, 1974, p. 327-8).
Haveria portanto uma fecundidade e positividade nessa perda do outro que talvez caiba a nosso tempo explorar de modo positivo.

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