16 agosto 2006
ARQUITETURA VIRTUAL
http://www.asa-art.com/mayer/2.html
A palavra "virtual" surge de um termo pré-histórico, de uma língua extinta há milhares de anos: sua raiz é *wiros, que significava "homem". As transformações dessa palavra ao longo dos séculos parece, em algum sentido, iluminar algo da natureza das metamorfoses humanas.
O Latim transformou-a no primitivo vir, que significava "homem, marido, herói, guerreiro". De uma tal palavra, foi produzido virilis - virilidade, "coisa própria do homem". Também virtus - virtude, potencialidade, poder da alma. Vir também podia designar "magistrado" - aquele que tem a competência do julgamento. O Latim Escolástico introduziria, em tempos medievais, o virtualis - quem tem em si mesmo poder de fazer, de realizar algo. Cícero defendia que o virtus era para a alma aquilo que a saúde e a beleza seriam para o corpo. Para Santo Agostinho virtus era o uso correcto da livre escolha. Virtus, potencialidade e livre arbítrio. Em seu belíssimo De Magistro, Santo Agostinho praticamente revela o signo enquanto virtus - abrindo uma gigantesca passagem para o virtualis, que apareceria algum tempo depois. Para descrever Deus, ele chegou a afirmar que não haveria uma dualidade entre ser e não ser, mas uma totalidade; como se pudéssemos lembrar Lupasco e seu princípio do terceiro incluso. Este seria, certamente, a natureza primeira dos virtus Escolástico.
Para São Tomás de Aquino, virtus era o poder em sua máxima expressão - para alcançar Francis Bacon, tempos depois, para quem o conhecimento era o poder. Para Bacon, a virtude estava no conhecimento. Algo que, muito depois, viria a ser traduzido como "informação e poder" por Foucault. Virtus, conhecimento e comunicação. Tantas vezes compreendida como "ausente", como "realidade paralela", a revolução virtual na passagem do milénio representa uma profunda metamorfose.
"Arquitectura virtual" não é necessariamente aquela criada em computadores, nem é exclusivamente aquela feita para o ciberespaço. Pela primeira vez na história da humanidade, tomamos como nossas todas as tradições do planeta. Desintegramos fronteiras no espaço e no tempo. Passamos a assumir a condição de transnacionalidade, de transdiciplinaridade e de trans-sensorialidade.
A "matéria prima" da arquitectura não é mais exclusivamente um ethos local. Assim, as relações humanas saltaram da escala do automóvel - responsável pelo redesign da família no século XX - para a escala teleproxémica: partindo de Edward Hall para chegar à expressão cunhada por René Berger. O íntimo, o espaço humano, não mais tendo os media como extensão, mas amplificados por próteses inteligentes caracterizadas pelos sistemas de telecomunicação em tempo real - o distante tornado próximo, o próximo transportado à máxima distância, sem tempo, imediatamente.
O ethos local passou a dar lugar ao ethos planetário e, contrariamente ao que foi imaginado por muita gente, a homogeinização global não aconteceu. Questões como a ética foram lançadas a primeiro plano. Antigas línguas e culturas - como o Sânscrito, o Iidishe, o Catalão, povos indígenas Americanos - conheceram um formidável renascimento e exuberância. A escritas Linear-A e a Linear-B revelaram costumes perdidos. Por outras vias, não somente o Antigo Egipto, a Babilónia, a Índia ou a China - mas também os Astecas, os Maias, a cultura de Mali e tantos outros povos - tornaram-se uma herança comum a todos.
Mas essa escala não apenas provocou uma "explosão" no sentido das grandes medidas do tempo e do espaço. O nascimento da nanotecnologia foi o reflexo do mundo constituído por nano decisões e, por essa via, cada indivíduo revelou um universo informacional não linear, mais comumente conhecido como DNA. Em arquitectura, essa complexa rede - inicialmente temida por representar um novo movimento internacional - gerou exactamente o contrário: a emergência da invenção como signo primeiro dessa revolução. É como se, mergulhado no turbulento tecido das mais diversas singularidades, o avêsso do estereótipo produzisse uma cultura da criatividade.
Em um sistema de hipercomunicação o válido é o percurso, a trilha, o "plano de vôo" na informação - como se recuperásse o método iniciático de Osiris no Egipto Antigo. Isto é: o ser enciclopédico, forte na memorização, foi substituído pelo articulador, pela pessoa hábil na combinação, em efectuar novas relações, apta à invenção. Por outro lado, questões relacionadas ao Direito, ao crime, ao controlo e à vigilância emergem como fundamentais elementos, momentos instáveis, que também compõe esta nova arquitectura.
Outra observação: a arquitectura passa a estabelecer uma cena viva da crítica cultural, enquanto sistema não verbal, lógica ao nível da estructura - arte. Este foi o espírito deste Projecto Arquitectura Virtual, com a edição da Architécti, do cd-rom, da exposição no Centro Cultural Belém em Lisboa e este site na net. Pouco texto será encontrado - a atenção central, neste projecto, esteve sempre voltada à metamorfose do espaço e da representação, à mutação do universo não verbal.
Um projecto que não teria sido possível sem o uso intensivo da Internet - imagens e informação em tempo real, de diversas partes do planeta. Do Japão, Akio Hizume captura Fibonacci, a Grécia Antiga, os segredos maçónicos perfurando séculos. Com simples bambús Hizume elabora structuras dinâmicas complexas. Cria, entre as mais antigas tradições Japonesas e as tradições Ocidentais, todas as pontes, todas as redes, todas relações. Em Paris, Ammar Eloueini opera o processo. Em certo sentido resgatando Jules-Ettiene Marey, Eloueini utiliza recursos digitais como espécie de tradução dinâmica de tudo o que é processo - fluxo, topologia, orientação. Para ele, tudo é transformado em organismo vivo em permanente mutação - o que Hizume significa como o enterlaçar de culturas, tempos e espaços, em Eloueini é enfeixamento do processo em todas as suas faces, em todo lugar. No outro lado do planeta, Dennis Holloway submerge nas civilizações pré-históricas da América do Norte para - através de um intenso trabalho arqueológico - projectar uma nova idéia de espaço. Holloway quebra a barreira do tempo viajando através de civilizações perdidas que são reconstruídas dentro de ambientes virtuais - aprendendo seus segredos antes de terem sido apagados pela barbárie. Essencialmente, desde o início dos anos 80, meu trabalho tem sido compreender a formação plástica de patterns sinápticos à partir de inputs e outputs sensoriais - arquitectura enquanto inteligência viva. Um desafio que não implica somente uma abordagem transcultural, mas também uma outra, de natureza trans-sensorial. Voltando à França, Fiona Meadows e Frédéric Nantois desenvolvem, com a @rchimedia, um intenso trabalho de reflexão no exercício da arquitectura como meio não verbal de comunicação. Todas as culturas, todas as idades, todos os espaços e linguagens. Imediatamente, damos um novo salto ao Japão - Katsuhito Atake: suas estranhas e fascinantes estructuras mutantes revelam estratégias moleculares. Tudo em permanente transformação. Para Atake, matemática, estética, química, biologia e física são partes de uma mesma disciplina. Repentinamente, encontramos Lars Spuybroek, e a NOX, com sua arquitectura líquida - espaço feito de tocar, luzes, sons, cores, todos os sentidos organizados como fluído. Penetrar em um de seus projectos é como experimentar nosso próprio corpo, algo como um espelho trans-sensorial. Para encontrar a Archimation - uma empresa Alemã dedicada a transportar idéias para a realidade virtual. Como um interface, a Archimation não apenas recria completas paisagens virtuais para arquitectos de todo o mundo mas também cria ambientes virtuais para espaços públicos, que são experimentados por centenas de pessoas. Assim, retornamos aos Estados Unidos, onde encontramos Mark Lawton - na Construct Internet Design - que faz arquitectura para o ciberespaço: o espaço da cidade maravilhosamente e definitivamente transformado em fantasma para turistas. Espaço livre projectado em linhas e movimentos mentais - como se tivéssemos Merce Cunningham na arquitectura. De Columbia, Marcos Novak aparece à nossa frente. Criador do conceito "arquitectura líquida" utilizado por Lars Spuybroek, movendo-se da música à arquitectura - como Hizume, Atake, eu próprio e muitos outros - Novak utiliza algoritmos, originalmente criados para música, elaborando uma transarquitectura "líquida e navegável". Para chegar a Stephen Perrella, de Nova York. Com ele, arquitectura é uma profunda reflexão sobre a natureza da morfogénese. Ponto magnético, entre geometria e caos, a fronteira da fronteira. Dentro de todos esses trabalhos podemos encontrar de Turner a René Thom, de Catilus a John Cage, de Vyasa a Edgar Allan Poe. Como se uma afirmação de Henry Focillon em seu clássico A Vida das Formas pudesse dizer não de Turner, mas dessa nova abordagem: para a qual, "o mundo é uma instável combinação de fluídos, a forma é um clarão em movimento, uma mancha indefinida em um universo em fuga". Para lembrar Santo Agostinho - não mais ser ou não ser, mas simultaneamente ambos: ser e não ser. Virtualidade de um universo em permanente fuga, em permanente mutação. Dos mais variados pontos do planeta, os dados sensoriais são o que é relevante, a potencialidade de tudo, o enterlaçamento dos mais distantes lugares, tempos, culturas, átomos, os "planos de vôo" no meio da informação, o enfeixamento de fenómenos, a turbulenta combinação de diferentes disciplinas lembrando-nos o pré-histórico *wiros e nossa maravilhosa condição humana. É suficiente pensar na nova natureza do poder em face ao ciberespaço para imaginar a dimensão da metamorfose que incorpora em um simples coup des dés todo o percurso da humanidade.
emanuel dimas de melo pimenta . arquiteto, urbanista, fotógrafo e compositor / Lisboa Portugal
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